quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Família Real e Loucura Escrava; a festa da princesa e o desespero da cativa em Petrópolis no ano de 1875.

Introdução

Petrópolis, cidade fundada na Serra do Mar Fluminense em 1843 e conhecida por ter sido o refúgio de verão da família real durante o Segundo Reinado (1840-1889), possui uma história que em muito faz lembrar as paixões da elite que lá desfrutava bons momentos na fria serra coberta pela mata atlântica. A beleza do local, suas agradáveis temperaturas e seu ar aristocrático atraiam inúmeras personalidades que também queriam desfrutar dos ares da serrania do imperador e fugir das altas temperaturas mescladas por violentas epidemias na capital do império; a cidade do Rio de Janeiro.
Mas não era apenas a elite que ocupou e morou na cidade do Imperador Pedro no século XIX; havia um grande número de germânicos que foram empregados na construção e colonização da cidade, operários mineiros e italianos que foram contratados para trabalhar nas crescentes companhias têxteis a partir da década de 1870 e, também, escravos; não tantos como na região do Vale do Paraíba, onde se encontrava inúmeras fazendas de café, porém havia sim os escravos petropolitanos, fazendo com que fosse frequente os anúncios de venda de escravos nos jornais da época, bem como a existência de quilombos, como na região da Fazenda Inglesa, por exemplo.
E em meio à majestosa vida aristocrática petropolitana, analisaremos neste texto aspectos da vida de escravos em Petrópolis em 1875; usaremos o mais antigo jornal petropolitano como fonte, trata-se de "O Mercantil" e veremos que nem todos tinham uma doce vida na serrania imperial do século XIX.
 
Petrópolis, 1875.

No dia 20 de janeiro de 1875 Petrópolis se preparava para mais um evento que mobilizaria a família real; era a Exposição de horticultura que se realizaria no começo do mês de fevereiro. O evento teve como diretores o comendador Paulino Afonso Pereira Nunes e o capitão Augusto Rocha Fragoso. A festa deveria mostrar o potencial da produção agrícola das terras imperiais que desde sua ocupação tinham sido vistas como uma promissora colônia agrícola que supriria a cidade do Rio de Janeiro de verduras e legumes.
Enquanto se projetava a festa da agricultura, trabalhadores escravos eram anunciados à venda, como no jornal "O Mercantil", de 16 de janeiro de 1875. Naquele número, podemos encontrar em sua parte final o seguinte anúncio; "Escravo para vender: vende-se um escravo de meia idade, por preço razoável, para informações nesta typographia."
A então futura signatária da Lei Áurea tinha influência na organização da dita exposição agrícola que se faria em Petrópolis no despontar de fevereiro de 1875; pois foi a própria Princesa Isabel quem tivera a ideia de realizar o dito evento, levado a diante e desenvolvido pelos já mencionados Paulino Afonso Pereira Nunes e o capitão Augusto Rocha Fragoso.
O evento buscava ser solene e salientar toda a riqueza natural que o solo das terras imperiais; até mesmo fora de município houve a preocupação dos organizadores de arregimentar figuras ilustres que pudessem estar presentes na dita exposição e verificar o elevado grau de civilidade, europeísmo e qualidade dos produtos naturais que se verificavam na terra aonde repousava a família real.
Como o jornal "O Mercantil" anunciava a dita exposição e contribuía para que ela se tornasse popular em Petrópolis, (popular pelo menos entre a minoria letrada da população) um dos organizadores, o senhor Rocha Fragozo, resolveu escrever uma carta para a redação em tom de agradecimento pelo empenho do periódico e insiste para que o mesmo continue em seu propósito de fazer: "sentir aos nossos agricultores a conveniência de concorrerem com os seus produtos para enriquecerem a nossa exposição; demonstrando-lhes ao mesmo tempo, a utilidade destas festas industriaes a favor do progresso de Petrópolis e a exemplo dos países mais adiantados, que a tem adotado com muita vantagem. Espero, pois que V. aplique o impulso da alavanca civilizadora da imprensa para erguer entre nós o gosto e o costume das exposições industriaes..."
Neste trecho podemos perceber que a exposição era organizada com o produto dos agricultores de Petrópolis, que eram então convocados a levar o que havia de melhor de sua produção hortícola à dita exposição que então se projetava. Além disso, existe claramente a preocupação no discurso civilizatório tão comum no século XIX que buscava fazer do Brasil uma nação europeia em seus costumes para que então pudesse tirá-la do "atraso" em que vivia.
A exposição era vista como uma prática civilizatória e que mesmo sendo de produtos agrícolas, era associada às famosas exposições industriais de então, quando países se juntavam para fazer exposições de suas invenções e que seriam um retrato do grau de evolução em que tal nação se mostrava.
Na freguesia de Santa Rita, ocorria ao mesmo tempo em que os preparatórios da exposição, algo bem diferente, mas que também ganhou as páginas de "O Mercantil." Nas terras do senhor Nistaldo Gomes da Silva, havia uma escrava chamada Benedita e que morava ali havia pouco tempo, tinha sido comprada no final de 1874 de dona Francisca e estava como escrava do dito senhor fazia três meses. Certamente não foi anunciada na mídia tal como o cativo de meia idade citado acima e sim foi adquirida pelo novo senhor diretamente com dona Francisca, visto que a distância entre as dois propriedades era pouca e os dois senhores se conheciam.
O fato é que a escrava possuía filhos, quatro crianças pequenas. O primeiro dos filhos era um garoto de seis anos que não era beneficiado pela Lei do Ventre Livre que foi assinada em 1871, pois a lei foi feita quando o garoto já tinha um ano de vida e a lei só libertava os filhos de escravos nascidos a partir data da lei. Entretanto, todos os seus irmãos já eram livres; um menino de dois anos, uma menina de três e uma filhinha recém-nascida de apenas seis meses.
Era aquela uma família escrava petropolitana em 1875; mãe e primogênito cativos, três filhinhos livres da escravidão pela Lei do Ventre Livre e um pai desconhecido; talvez fosse um homem branco, livre, talvez outro escravo.
E naquela família escrava, no dia nove de janeiro de 1875, a Benedita toma um ato de fúria e indignação contra a vida. Tomou seu filho primogênito de seis anos no braço e tratou de atirá-lo dentro do poço a fim de afogar a criança; o garoto foi tombar em encontro à morte dentro do poço, quando que a falta de profundidade das águas e a destreza do pequeno fizeram com que sua vida não fosse ceifada pela queda e assim pudesse sobreviver ao atentado. Consta que foi buscar segurança na casa do senhor contra o ato materno. Seria por demais ousado fazer divagações aqui a respeito das verdadeiras intenções de Benedita com seu ato assassino; talvez estivesse louca ou poderia estar querendo libertar o filho da condição servil. Aliás, a segunda hipótese é bem plausível, visto que a resistência à escravidão envolvia várias modalidades de boicotá-la, até mesmo abortos por parte de escravas que se recusavam em dar à luz novos cativos aos seus senhores. Nesse ponto é razoável pensar no ato de Benedita.
Talvez seu senhor Nistaldo pensasse a mesma coisa; poderia ser uma reação dirigida contra o menino de futuro servil. Tanto assim o foi, que o garoto foi imediatamente retirado do contato com a mãe e ficou em companhia do senhor que resolveu protegê-lo. Os demais filhos de Benedita continuaram em seu poder, provavelmente o senhor não acreditava que ela seria capaz de repetir tamanho mal contra crianças tão pequenas e indefesas cujos futuros não eram marcados pela fatalidade da servidão.
Mas o prosseguimento das ações de Benedita mostra que o futuro como escravo não era o fator que a levava a querer matar seus filhos. O filho de dois anos e a pequena de três foram igualmente acometidos pelo ato de fúria materna e lançados no mesmo poço; para aquelas crianças tão pequenas a queda foi fatal e as águas do poço muito fundas para que pudessem se salvar; morreram.
Faltava ainda o menor de todos os filhos; a recém-nascida de seis meses. Benedita tomou a pequena nos braços e caminhou com o rebento por meia légua em direção às terras de sua antiga senhora, dona Francisca e no poço que por lá sabia aonde era, lançou sua bebezinha sem que houvesse a menor possibilidade dela sobreviver. A escrava assistiu a agonia e a morte da última de suas crianças antes de se projetar e se enforcar, pondo fim à sua própria existência.
Ao ser noticiada tamanha tragédia no "O Mercantil", o redator atesta que a única explicação para tamanho ato de crueldade de uma mãe contra seus filhos é a loucura. Certamente temos muito do que duvidar da sanidade mental daquela mulher que viveu há dois séculos antes de nós; assim mesmo, é possível perceber nessa loucura um ato de rebeldia e uma ação contra o cativeiro e à condição escrava, tomada de forma extrema numa fuga para um mundo sobrenatural ou ao menos fora do real.
E eis que conjuntamente à tragédia da escrava, no dia dois de fevereiro daquele ano, ocorreu a supracitada exposição agrícola de Petrópolis no jardim público da cidade, evidentemente com a presença da família real, com a figura carismática e presente do imperador dom Pedro II, que ao ouvir o discurso de início do evento levantou-se e exclamou: "É sempre com o maior júbilo que eu me associo às festas do trabalho" .
BIBLIOGRAFIA
AMBROZIO, J. C. G. O Presente e o Passado no Processo Urbano da Cidade de Petrópolis (uma história territorial) Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2008
CUSATIS. José. Os Italianos em Petrópolis. Petrópolis. Edição da Câmara Municipal. 1993
LAMEGO, A. R. O Homem e a Serra. IBGE, setores da evolução fluminense. Rio de Janeiro. 1950
MARTINS, Ismênia de Lima. Subsídios para a História da Industrialização em Petrópolis. Petrópolis. Universidade Católica de Petrópolis. 1978
RABAÇO, J. H. História de Petrópolis. IHP. Petrópolis. 1965
VASCONCELOS, Francisco de. Petrópolis do Embrião ao Aborto Petrópolis: ParkGraf editora. 2007
FONTES PRIMÁRIAS
O Mercantil. Petrópolis. 23 de janeiro a 06 de fevereiro de 1875.

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